As poesias e letras de música se decoram não tanto por saber quem as originou, muito menos por suas classificações temporais ou de gênero, mas pela repetição. São ecos, fios de histórias que reverberam por túneis cavernosos da memória, trilhando um caminho neurológico que acompanha uma comunidade por gerações, mesmo que inconscientemente. É dessa repetição que surge a afirmação de personalidade, as memórias afetivas, a manifestação de interesses. Dela que se criam mitos, os coletivos ou individuais. Talvez seja por isso que obsessivamente, muito mais que história, perseguimos mitos.
Mateus Aleluia não fez parte da fundação do histórico Os Tincoãs, grupo formado na Bahia no nascer da década de 1960, mas, talvez, tenha sido quem trouxe ao conjunto sua alma, e subsequente redescoberta. O repertório dos Tincoãs no início de sua primeira década era, em suma, composto de boleros e bossas. Uma banda enquadrada em modelo comercial, mas que nas harmonias virtuosas de Erivaldo, Heraldo e Dadinho, apresentavam um vislumbre para a destreza instrumental dos baianos de Cachoeira. Com a saída de Erivaldo e a chegada de Mateus, o grupo abre a década de 1970 incorporando ao seu som os atabaques e temas típicos dos ritos afro-brasileiros, vertente tímida, mas constante, na música popular até ali. J. B. de Carvalho, cabeça do Conjunto Tupí — e em seguida líder do grupo J. B. de Carvalho e Seus Caboclos — era a face principal da música ‘batuqueira’ desse período, que viu a ascensão da bossa nova como música nacional. Ainda muito distante da bossa, essa já cooptada e reinterpretada de motivos do samba para um mercado embranquecido, a música inspirada por cânticos africanos perpetuados em rituais de Candomblé, Catimbó e em giras de Umbanda permanecia sendo perpetuada como mero instrumento do ‘baixo espiritismo’.
A produção dos Tincoãs serviu propósito tanto de registro, quanto de resgate. Além das composições originais (geralmente por Dadinho e Aleluia) o esforço em adaptar e registrar cantos ancestrais, nunca propriamente documentados. Em um movimento perpétuo de reconfiguração musical e adaptações líricas, as canções originárias de diferentes regiões da África, e de diversas vertentes religiosas, se mutam em solo brasileiro, as pronúncias e grafias vão se aportuguesando, a síncope dos tambores se estabelecem como o traço mais direto de proximidade. Assim como canções folclóricas de outros territórios, essa constante transformação é um desafio a binaridade do início/fim do tempo musical estabelecido pela erudição européia. Esse novo tempo musical ascende a um tempo alheio, se transforma enquanto viaja pelas ondas sonoras, uma vibração constante mesmo em eterna mutação.
Mário de Andrade já aponta os confins musicais de harmonias infinitas presentes nos ritos brasileiros em seu texto “Música de Feitiçaria no Brasil”, apresentado em 1933 em congresso na Associação Brasileira de Música, no Rio de Janeiro. Nele, Andrade teoriza que a psique brasileira deseja e busca a repetição, almeja pela hipnose ou transe musical. A música como narcótico legal.
"Em nosso povo o processo da variação consiste, na repetição da melodia, em mudar-lhe dois ou três sons, ou, por causa das acentuações das palavras dos textos, em deslocar algum acento."
O processo artístico viabilizado pela tradição oral tem no lapso de memória a matriz de sua força criativa, as adaptações transmitidas pelas gerações operando como cápsulas temporais que preservam o breve momento de um passado, com traços de revisionismo que sinalizam o seu presente. Com essa mecânica, agora sistematizada, a música ritualística se descola das outras artes por qualidades que facilitam a evocação de histórias e sentimentos reconhecíveis, mas muitas vezes indecifráveis. Se os pensamentos vivem na literatura e o cinema tenta, de certa maneira, dar forma ao real, é na sensibilidade musical que habita o instinto mais gutural, um que só se pode associar a um estado subconsciente, o reconhecimento de um ethos que talvez não seja o meu, mas que reconheço por ecoar na natureza cíclica da história, infinitamente. É arte imaterial, portanto, espiritual, um dos últimos mistérios da percepção humana. A música vislumbra o verdadeiro sentido de liberdade, mesmo que não estejamos capazes de reconhecê-la e definir seu impacto de forma deliberada. Natural que seja adotada como ferramenta litúrgica.
"Tudo isso pela sua própria pobreza deixa cantador e ouvinte numa indecisão pasmosa, completamente desnorteado e tonto: porque esse é realmente o processo de tornar mais forte, mais eficaz o poder hipnótico da música."
O valor hipnótico do canto popular apontado aqui por Mário de Andrade, traça um trajeto de simplicidade nas repetições, tanto musicais quanto históricas, algo também comum no canto folclórico europeu. Este último e o canto popular se divergem na bifurcação entre preservação cultural e resgate de tradições extinguidas. As lideranças Cristãs já legislavam por um código moral a ser seguido por seus fiéis desde o segundo século após a morte de Cristo, a música era alvo de regras sugeridas para manter-se centrado nos confins dogmáticos da época. No tratado De Spectaculis, Tertuliano de Cartago (região no continente Africano) categoriza a ida a espetáculos teatrais e circenses como “contágio ideológico” e afirma que o uso de certos instrumentos típicos da região (como a tíbia) foram retirados de cultos pagãos, portanto, ferramentas de degradação moral que atuavam contra os valores cristãos, um acorde sendo capaz de despertar a lascividade ou desejo por prazer de um indivíduo. Com a progressão dos séculos, pensadores cristãos (e não cristãos), desenvolveram sobre esse código moral, especialmente em relação a música, adicionando instrumentos à lista daqueles considerados pagãos. A âncora da delimitação estética é a de que os cantos cristãos deveriam ser simples e ‘puros’, não só em liricismo quanto em melodia. Se dá nisso a ritualização em torno de uma ideia erudita de musicalidade, a mesma que tem ecos vigentes em algumas castas da música clássica, que se mantém vigilante ao comportamento e vestimenta durante apresentações de orquestras e afins.
Em Terremoto Santo, Benjamin de Burca e Bárbara Wagner filmam artistas evangélicos que seguem cartilha estética de um fiel moderno, a imagem conservadora contraposta à fórmula videoclíptica da música pop. Todos os Mortos, filme mais recente de Marco Dutra, que co-dirige com Caetano Gotardo, também usa da música como elemento de primeiro plano, construindo do piano erudito e do atabaque da umbanda uma dicotomia de conflito, não só de classes, mas nesse caso, espiritual. São exemplos recentes de um cinema que apenas ocasionalmente se volta sobre o aspecto antropológico da música no país, do que era e é percebido como ‘crença preta’ e ‘crença branca’, e suas relações com a música popular. Mesmo que o longa de Dutra e Gotardo faça do debate sobre fé e herança uma bifurcação (o filme não se extrapola além dos elementos sugestivos desses temas). É um exercício de imaginação que sintetiza o suposto valor espiritual da música de maneira material e o embate de costumes que acarreta, numa polarização especificamente brasileira. Já o curta de Burca e Wagner, assim comos outros de seus projetos, estende a mão para entender um grupo, enquanto mantém certa distância de seus objetos, criando uma terceira entidade além de si e seus objetos.
Mesmo para uma nação de herança problemática, o Brasil tem na música a sua maior potência cultural, que em detrimento de seu passado foi capaz de encontrar um ponto de convergência entre o popular e o erudito. Da música periférica contemporânea aos ritmos regionais de tradição, a vanguarda artística brasileira está na canção. Para mim, soa estranho que essa constante inovação estética nacional presente na música não tenha equivalente na produção cinematográfica, preservada a nossa ciência dos entraves e sabotagens institucionais que o cinema brasileiro sofre desde sua inauguração.
No que cerne a adaptação do imaginário da diáspora africana por vias do candomblé e da umbanda, talvez tenha sido Nelson Pereira dos Santos um dos únicos cineastas que objetivamente pôde exercer o espírito simples da repetição em forma de película, tanto em O Amuleto de Ogum (1974) quanto em Tenda dos Milagres (1977). Em Amuleto, Nelson reimagina alguns mitos de caboclos e Orixás em uma trama urbana de crime e malandragem. Em Tenda, toma uma abordagem histórica que brinca com a narração (algo retirado diretamente do romance original de Jorge Amado) para ilustrar a intolerância tradicional do país e seus ecos na dinâmica passado-ficção e presente-realidade.
Assim como fazem os cânticos dos ritos afro-brasileiros e seus mitos, Nelson Pereira dos Santos resgata o passado para poder fixar o presente, fazer harmonia das dores cotidianas. O trabalho de Mateus Aleluia e dos Tincoãs opera sob essa lógica, de que somente ritualizando o passado o brasileiro consegue vislumbrar uma passagem para o horizonte esperançoso.
Os cantos ritualísticos testemunhados e mencionados por Andrade, lembra ele, seguem quase que em sua maioria progressão na escala pentatônica, portanto, possuem um valor de repetição inerte. O que Os Tincoãs fazem já em seu primeiro álbum homônimo (de 1973) é reproduzir em Deixa a Gira Girá uma destas melodias repetidas pelo rolar dos anos, em verniz moderno. Os atabaques permanecem, mas a faixa, que abre o álbum e inaugura a fase espiritual do trio, anuncia um arrojo musical que renovaria o cancioneiro dos terreiros ao grande público, dando mais uma vez rostos às vozes que ecoavam pelo Brasil, em conglomerados de isolamento. Deixa a Gira Girá é uma reprodução de Cangira, composição de Paulo Rodrigues e Valdir Machado (também gravada por J. B. de Carvalho e seu Conjunto Tupi em 1953), por si só uma reprodução ancestral e desde sua primeira gravação, um estandarte das giras de Umbanda, muitas vezes sendo o centro da ritualística de abertura dos trabalhos.
Em seu LP de 1977, também homônimo, Os Tincoãs registram sua composição própria que mais ecoaria pelo imaginário brasileiro em décadas subsequentes, Cordeiro de Nanã. A faixa — talvez mais reconhecida pela regravação de João Gilberto no disco Brasil (1981), em parceria com Bethânia, Caetano e Gil — entra para o cânone de letras mais reproduzidas na produção fonográfica do país, virando motivo recorrente tanto no cancioneiro afro-brasileiro, quanto na música popular. Repetição que fez de seu refrão um mantra moderno. Assim como a antiga repetição, a reprodução de trecho se estabelece em detrimento (intencional ou não) da integridade da faixa. Cordeiro de Nanã é para mim a canção mais bonita já composta/gravada no país. De versos que resumem canto de dor e exaustão, e harmonia assombrosa de Dadinho, Eraldo e Mateus que exalta uma história não vivida, mas imposta.
“Fui chamado de cordeiro mas não sou cordeiro não
Preferi ficar calado que falar e levar não
O meu silêncio é uma singela oração”
Recentemente em exibição no festival In-Edit Brasil, Aleluia, o canto infinito do Tincoã constrói retrato do baiano tão espiritual quanto sua música, expressando em cinema um olhar de contemplação sobre vocação, artística ou religiosa, que argumenta que quando se fala de certas sensibilidades, aquelas quase sobrenaturais, não é tanto sobre crer quanto sobre ser. Em certo momento, Aleluia afirma: “Aquilo que a gente não vê essa é a única realidade“. Com seu terceiro disco solo, Olorum (2020), Mateus reflete diretamente sobre uma herança brasileira que há mais de 500 anos tenta resgatar e entender um passado violento, ainda reverberante. Torna sonora a realidade invisível. Mais solar que seus outros dois (excelentes) álbuns, Olorum se concentra tanto nas lendas do passado quanto no cotidiano, que transita entre a reverência ao ancestral e o questionamento a crença, tenta fazer sentido do que é imposto a um indivíduo, antes mesmo do princípio de sua existência. No limiar entre linguagem poética e linguagem prática, entre mundo imaginário e realidade cotidiana, o exorcismo comandado pelos atabaques e a invocação dos sinos e afoxés materializa um desejo por harmonia, mesmo através de tudo que não tem explicação.
É nesse exercício de uma vida que Mateus Aleluia resume, como ninguém resumiu, facetas de quem se encontrou ao se perder. “Só estou manifestado quando estou no mato, fora disso eu me perco”, ele diz enquanto observa as árvores e o céu que o cobre. Com o entendimento de que não é somente na busca que Um se encontra, Olorum e a obra de Mateus com os Tincoãs grita que vivemos tanto pelo resgate, quanto pela afirmação.
"Da mesma forma que o Huitota ou o neto do Inca decaído traz sempre na boca as folhas de coca, o homem brasileiro traz na boca a melodia dançada que lhe entorpece e insensibiliza todo o ser."