Cultura Pop Como Mal Hereditário: Notas Sobre Riverdale
Riverdale é uma série indissociável do contexto cultural em que foi concebida.
O gosto não possui um sistema e não possui provas. Mas existe uma espécie de lógica do gosto: a coerente sensibilidade que fundamenta e dá origem a um novo gosto. Uma sensibilidade é quase, não totalmente, inexprimível. Qualquer sensibilidade que possa se enquadrar no molde de um sistema, ou ser manuseada com os toscos instrumentos da prova, não é mais uma sensibilidade. Ela se solidificou numa ideia…
Susan Sontag, Notas sobre Camp
01.
O indivíduo inserido no mundo hoje tem um acervo visual particular, construído a partir de sua vivência numa era em que se é bombardeado por imagens (filmes, redes sociais, televisões, celulares). Cada vez mais esses bancos de dados são evocados: uma imagem puxa a outra, que por sua vez responde a uma terceira…; em filmes, séries ou mesmo em obras não visuais existe esse aspecto referencial: a retomada de imagens, arquétipos, signos.
É um fenômeno comum dessa época a existência de obras que abusam de referências de maneira vazia – isto é, menção por menção, cuspir nomes como truque baixo para satisfazer o ego do espectador, easter eggs…; no caso de Riverdale*, porém, soma-se às suas tropes adolescentes – responsáveis por construir uma cosmologia própria, com seus mistérios mirabolantes e diálogos absurdos – uma leitura crítica sobre todo esse legado.
02.
A escolha do elenco adulto dá a dica: atores como Luke Perry, Mädchen Amick, Molly Ringwald e Skeet Ulrich são muito lembrados, sobretudo, por seus papéis em filmes e séries adolescentes ou de gênero dos anos 80 e 90 (Barrados no Baile, Twin Peaks, os filmes de John Hughes…) e agora interpretam pais preocupados – e inevitavelmente em conflito – com seus filhos adolescentes. São como fantasmas da cultura pop condenados a criar filhos moldados por ela.
Relações traumáticas entre pais e filhos se complexificam ainda mais à medida em que os mistérios de Riverdale são revelados; não é raro que os pais estejam envolvidos nos crimes que ocorrem na cidade. Betty, uma das protagonistas, tem uma espécie de gene da psicopatia herdado do pai, e esse é um de seus grandes dilemas: sucumbir ou não à macabra narrativa determinista construída sobre si. Veronica e Cheryl têm que lidar com suas famílias sinistras: a primeira vive em função de desafiar o pai, um chefão da cidade, enquanto a outra carrega o peso dos mistérios que vão se revelando gradualmente após a morte de seu irmão; Jughead vive na bifurcação entre ser um jovem aspirante a escritor (“o primeiro Jones a entrar na faculdade”, diz o pai) e o herdeiro do trono de uma gangue local; Archie, por sua vez, tenta se tornar um homem justo como o pai, mas apesar de um raro caso de influência paterna positiva, ela adquire um peso brutal à medida em que o jovem parece cada vez mais impossibilitado de viver uma vida normal. Todos os protagonistas lidam com o drama de viver à sombra da família, de obedecer ou não aos discursos correntes que tentam moldá-los à semelhança de seus pais.
03.
Riverdale é uma série cuja construção dramática é indissociável do contexto cultural em que foi concebida; isto é, algo que só poderia ser feito numa época de quase onipresença das imagens – atenção: não confundir com o que de mais vazio e oportunista se produz sob a justificativa do zeitgeist (a arte que se julga “importante”). Desde os primeiros episódios já fica claro que personagens como a líder de torcida arrogante (Cheryl) ou o garoto esquisito que usa roupas escuras e gosta de literatura (Jughead) obedecem a arquétipos e signos bastante reconhecíveis da representação adolescente na cultura pop, assim como as situações que vivem; as frequentes menções a filmes e séries nos diálogos e nos títulos dos episódios; e as cenas videoclipadas, repletas de câmera lenta e música pop. Existe tanto um processo de esvaziamento dessas referências quanto uma legítima admiração pelo que elas representam; tanto um senso de alienação e paranoia em relação à própria cultura pop quanto uma crença inabalável no que se produz a partir dela (“Isto significa que o Camp revela inocência, mas também, quando pode, a corrompe.”, Sontag).
A partir de algum momento de Riverdale, já não lidamos apenas com serial killers – ou pelo menos não com qualquer serial killer –, mas com uma série de crimes e mistérios construídos e veiculados através da cultura pop, como um macabro RPG que vira febre na cidade ou uma disputa de contos de suspense que toma rumos inesperados.
04.
O episódio final de Neon Genesis Evangelion é uma espécie de storyboard autofágico que, se não revela, ao menos evidencia o caráter díptico da série: uma metade construída a partir do que existe de mais básico na tradição à qual Evangelion responde (ou seja, tropes de animes e mangás); e outra, uma desconstrução dessas mesmas tendências (seja do fanservice ou das consequências raramente exploradas de depositar responsabilidades desproporcionais em adolescentes, por exemplo). A série precisa se reconstruir a partir do artifício para evidenciar o absurdo intrínseco às tropes em questão.
Riverdale também não esconde uma incerteza em relação ao legado que carrega: novamente adolescentes com responsabilidades desproporcionais, divididos entre a vida escolar e a investigação de crimes violentos; novamente a necessidade do artifício – aqui, de diálogos exagerados e cômicos, do maneirismo… – para exercer um valor crítico, mas também como manifestação genuína de crença no que ele implica. O artifício, em Riverdale, é tanto uma forma de instrumentalizar referências, signos e arquétipos enquanto elementos valiosos para sua sensibilidade; quanto uma maneira de movê-los em prol de um posicionamento crítico. Uma espécie de inocência camp, talvez.
05.
A reta final da quarta temporada introduz um novo mistério: os personagens recebem fitas de vídeo que escalam de meros registros da área externa de suas casas até snuff movies em que os criminosos estão fantasiados como os próprios protagonistas da série – fantasias inspiradas pelo visual dos personagens nas histórias em quadrinho que deram origem ao programa de televisão.
No arco de Stonewall, Jughead compete com outros alunos para ver quem escreve os melhores contos de suspense; as fronteiras entre ficção e realidade são frequentemente desafiadas enquanto ele investiga os mistérios do próprio colégio. Deste arco o episódio final da quarta temporada herda o apreço pelo aparato metalinguístico de contar uma história deixando evidente o mecanismo à sua volta: são narradas maneiras distintas de lidar com o autoritário diretor do colégio de Riverdale, Sr. Honey: uma civilizada, com ajuda da influência dos pais (a real) e outra, onde ele é assassinado (o conto escrito por Jughead). Ao final do episódio, Betty e Jughead assistem a uma fita onde o assassinato (real) do diretor é encenado em referência à conclusão fictícia que o conto indicava.
O plano em que, dentro da televisão, vemos os criminosos fantasiados como personagens (dos quadrinhos) de Riverdale resume tudo: a cultura pop, a metalinguagem e as referências operando como veículos do crime e encontrando a artificialidade maneirista típica de Riverdale; algo como uma autorreferência multimidiática (as fantasias, a própria utilização de câmeras para veicular os crimes).
06.
A necessidade de incrementar a língua cursiva com chavões – que muitas vezes são utilizados para descrever outros chavões – como tropes, easter eggs, zeitgeist para falar a respeito da série só confirma que Riverdale tem um ponto.
*À ocasião da publicação deste texto, a série tem quatro temporadas completas lançadas; a quinta já está confirmada.